O dia em que a "sola" de Andreas Pereira virou contexto em horário nobre
- Igor Schulenburg

- Oct 9
- 6 min read
Por um jornalista que torce, mas tenta pensar.
Existe um momento peculiar na vida de todo torcedor brasileiro quando ele finalmente encontra aquilo que sempre procurou: não a confirmação de que seu time é o melhor do mundo — isso ele já sabia desde os cinco anos de idade —, mas sim a validação científica de que a perseguição que ele jurava existir não era apenas fruto da imaginação febril alimentada por Brahma e sofrimento dominical.É mais ou menos como descobrir que o monstro debaixo da cama sempre esteve lá, só que com contrato de R$ 6 bilhões e logotipo da Globo.

Acabo de terminar a leitura de um relatório denso, metodológico e assustadoramente bem documentado sobre a cobertura da Rede Globo ao Palmeiras entre maio e outubro de 2025. E confesso: passei por todas as fases do luto.
Negação: “não pode ser tão descarado assim”
Raiva: “EU SABIA!”
Barganha: “mas será que não é só porque eles estão bem mesmo?”
Depressão: “o futebol morreu”
Aceitação: “é, o negócio é bizarro mesmo”
Agora, com a serenidade de quem lembra do "Bonde do Ipatinga", vou tentar fazer o que todo bom jornalista deveria: analisar os fatos, entender o contexto e, ocasionalmente, soltar um “pô, mano, sério isso?”.
⚽ O caso Andreas Pereira, ou como transformar sola da chuteira em atração
Vamos direto ao epicentro da polêmica, o caso que transformou milhares de torcedores em experts em análise de replay e enquadramento jornalístico. Em 5 de outubro, Andreas Pereira, meia do Palmeiras, aplicou no pobre Marcos Antônio uma entrada que faria Pepe, o português, mandar mensagem perguntando se estava tudo bem em casa. Sola da chuteira, canela do adversário, vermelho para a credibilidade da arbitragem brasileira.
O que aconteceu em seguida é um masterclass de comunicação estratégica. Primeiro, PC Oliveira, o comentarista de arbitragem oficial da Globo, fez seu trabalho: analisou tecnicamente e concluiu que "merecia cartão vermelho". Ponto. Mas aí, prezado leitor, é que a mágica acontece. Menos de 24 horas depois, numa coordenação que faria Hamilton chorar de inveja, Globo, ESPN e TNT Sports tem entrevista na área.
O resultado? Uma matéria com o título: "Andreas explica lance polêmico em São Paulo x Palmeiras e diz: 'O árbitro teve uma boa decisão'". Não, você não leu errado. O cara que, segundo o especialista da própria casa, deveria ter sido expulso, ganhou uma plataforma para dizer que o árbitro acertou. E mais: que ele é um cara legal, que pediu desculpas (ah, tá tudo bem então), que trocou camisa com o adversário (pronto, está perdoado) e que "não tinha peso nenhum na perna" — uma tese que apenas pessoas que nunca pisaram em um campo de futebol ou físicos quânticos especializados em levitação poderiam levar a sério.
Agora, façamos um exercício. Quando Gonzalo Plata foi expulso injustamente, quem deu entrevista foi o diretor do Flamengo criticando o árbitro, não o jogador recebendo palanque para se defender. Fagner, com seu histórico de entradas carinhosas, jamais sonhou com esse tratamento VIP. Mas Andreas Pereira? Ah, ele ganhou o pacote completo: acesso, exposição, e uma narrativa que o transformou de vilão em incompreendido em menos tempo do que leva para o VAR não funcionar.
A esquizofrenia editorial, ou quando a casa se divide
O mais fascinante deste episódio não é nem a defesa do jogador — todo clube faz isso, é parte do jogo. O perturbador é a contradição interna. É como se o Jornal Nacional dissesse que vai chover e o Fantástico, no mesmo dia, fizesse matéria sobre a onda de calor, ambos olhando pela mesma janela.
Essa dissonância não é acidental. Ela revela algo mais profundo sobre como se constrói narrativa no jornalismo esportivo contemporâneo. A análise técnica fica confinada a um artigo específico, lida por quem já está procurando por ela. A narrativa principal, aquela que vai para a home, para as redes sociais, para o senso comum, é outra: a defesa do jogador, amplificada, legitimada pela própria estrutura da notícia. O que o relatório demonstra com frieza metodológica é que esse padrão não se repete com outros clubes e jogadores. E isso, meus amigos, tem um nome: tratamento diferenciado.

Os R$ 6 bilhões no elefante na sala
Agora, vamos ser honestos: existe um contexto. E que contexto.!Em março de 2024, a Globo fechou um contrato de R$ 6 bilhões com o grupo Libra, do qual o Palmeiras é peça central, para transmitir o Brasileirão até 2029. Seis bilhões. Para colocar em perspectiva, com esse dinheiro dá para comprar três Neymar, meio CR7.
É muita grana. E grana cria relacionamento. Relacionamento cria acesso. Acesso cria pauta. E pauta, bem manejada, cria narrativa. O relatório é cirúrgico ao apontar que o Palmeiras não só estava em primeiro lugar no campeonato como também quebrava recordes de audiência. O jogo contra o Chelsea teve 27 pontos em São Paulo. Os clássicos eram fenômenos. Do ponto de vista empresarial, faz todo sentido dar holofote para quem traz ibope. Eu entendo. Você entende. Até minha avó, que acha que impedimento é golpe do capitalismo, entende.
O problema, e aqui mora o diabo dos detalhes, é que jornalismo não é (ou não deveria ser) apenas uma extensão do departamento de maximização de lucros. Quando a linha entre "cobrir o que é relevante" e "promover o que é rentável" fica borrada, a credibilidade vira a primeira vítima.
A conclusão elegante: não é quanto, é como
Não nego, o Palmeiras merecia estar no centro da pauta. Time líder, quebrando recordes, gerando audiência, com um técnico ranzinza e que faz história... Está certo. É jornalismo básico: você cobre o que é relevante.
O que o relatório desmonta, com paciência beneditina e evidências que deixariam qualquer promotor público salivando, é a forma como isso foi feito. As análises táticas aprofundadas para uns, as reportagens humanizadas para outros. A convergência suspeita entre interesse comercial, alinhamento político com a nova CBF e o tom editorial. Não é teoria da conspiração quando você tem print, timestamp e comparação metodológica.
Como torcedor do Flamengo, confesso que uma parte primitiva do meu cérebro quer gritar "EU SEMPRE SOUBE!". Mas como jornalista (ou pelo menos alguém que tenta sê-lo), tenho que reconhecer: no jornalismo, como no futebol, a percepção de parcialidade corrói a confiança tanto quanto a parcialidade real.
O Flamengo no espelho
Aqui vai um exercício de autocrítica para não parecer que estou apenas chorando (embora, convenhamos, seja meu direito): o Flamengo também teve cobertura extensa no 8 a 0. Fomos celebrados. Nosso 8 a 0 foi tratado como deveria ser — um acontecimento. Mas quando chegou a hora de análises táticas profundas, semana após semana? Quando o assunto era discussão estratégica, evolução do esquema, dissecação do trabalho do técnico?
E não adianta dizer que isso é só porque o Abel dá mais entrevista. Claro que uma fonte acessível facilita o trabalho. Mas a escolha de como usar essa fonte, quanto espaço dar, que narrativa construir — isso são decisões editoriais. E decisões editoriais, quando sistematicamente pendendo para um lado, deixam de ser editoriais e viram outra coisa.
A Crise de Arbitragem Como Cortina de Fumaça
A crise de arbitragem de 2025 é uma tragédia grega em episódios semanais onde ninguém sabe ao certo quem é herói ou vilão, apenas que todo mundo vai sofrer até o final. A CBF amadora, árbitros sem estrutura, VAR usado como ferramenta política de afastamento ao invés de correção técnica. É um sistema falido onde todos aparecem tanto como beneficiados, quanto como vítimas.

Mas aqui está a sacada: numa crise generalizada, onde todos reclamam, onde todos são prejudicados e beneficiados em alguma medida, quem tem o maior poder de construção de narrativa leva vantagem. E o caso Andreas Pereira mostra exatamente isso. Não é que só o Palmeiras teve lances polêmicos a seu favor — todos tiveram. A diferença está em quem consegue, no dia seguinte, transformar uma possível expulsão em "boa decisão" do árbitro nas manchetes do maior portal esportivo do país.
O que fica
Termino esta crônica sem respostas definitivas porque, convenhamos, futebol brasileiro não é lugar para quem gosta de conclusões claras. É tudo bagunçado, contraditório, apaixonante e profundamente frustrante ao mesmo tempo. O relatório que acabei de ler não vai mudar nada no curto prazo. Os R$ 6 bilhões continuam lá. A audiência do Palmeiras continuará sendo excelente. O Abel continuará ranzinza. E a Globo continuará sendo a Globo.
Mas algo mudou em mim, e talvez mude em você também. Aquela sensação difusa de que "tem algo errado aqui" ganhou contornos, dados, comparações. Não é mais só coisa de torcedor paranóico (embora eu mantenha meu direito constitucional de ser paranóico em horário de jogo). É documentado. É comparável.
E sabe o que é o mais irônico? O Palmeiras nem precisa disso tudo. O time é excelente, o projeto é sólido, o futebol é competente. Por ora, me resta voltar a fazer o que já fiz muito: torcer para que, um dia, a gente consiga separar o que é jornalismo do que é torcida organizada com CNPJ.
Até porque, no fundo, eu sei que na próxima vez que o Flamengo fizer 8 a 0 em alguém, eu vou querer manchete com letras garrafais também. A diferença é que, pelo menos agora, eu sei que nem todo mundo consegue.
Escrito por um flamenguista que leu 47 páginas de um relatório acadêmico em plena quarta-feira, quando deveria estar dormindo. Mas, como diria Nelson Rodrigues, "o subconsciente é o nosso juiz implacável" — e o meu cobra consistência editorial.






















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